O século 21 está aí,
acordando juntinho da gente todos os dias. Puxando a colcha para o seu lado, no
intuito de angariar ótimas noites de sono, enquanto nos deixa descobertos e
carentes sobre um colchão frio.
Ele nunca nos abraça, não
tem tempo para conversar conosco. Seu café da manhã consta apenas de chá de
bites e torradas com chip. É um parceiro que não admite divórcio, portanto
precisamos manter esta relação até que a indefectível morte nos separe. Ou,
quem sabe, uma miragem em 3D nos projete para o paraíso das conjugalidades
virtuais.
Ignora-se o porquê de
termos decidido juntar nossas escovas de dente com as manias decorrentes desta
era. Mas não havia outro jeito, pois ainda não inventaram uma máquina do tempo
que, por exemplo, nos conduza às invenções em série do século 19.
Ah, e que nos deixe,
importa o adendo, prazerosamente flanando por lá.
De preferência, aliás,
na charmosa Paris, de braços dados com refinada companhia poética. Ninguém
menos que Baudelaire, o pintor da modernidade, junto de quem desvendaremos as
atrações das sedutoras ruas da Rive Gauche, todas em burburinho com as
novas vitrines, cafeterias e galerias.
Lindo assistir ao
espreguiçamento e acordar da urbanidade, imersa nas surpresas das artes, na
pintura, no fascínio do cinema, nos carros que principiavam, desajeitados, a
compor um tráfego de veículos ainda tímido e desordenado nas cidades.
Talvez dar um pulo até
Viena ou Berlim e desfrutar também da construção do fascínio de uma época
prenhe de artistas filósofos, músicos e escritores imorredouros.
Após examinar o quadro
desenhado nos parágrafos acima, é possível que você comece a desfiar um rosário
sobre as inegáveis e extensas vantagens embutidas na época atual. Velocidade,
agilidade, plena facilidade de acesso a marcas, produtos e serviços, só para
ilustrar.
O convívio mágico e
hipnótico com a internet nos faculta hoje, desde compras e pesquisas
variadíssimas, distantes somente alguns cliques da realidade — como o
aprendizado gratuito de um idioma exótico, de nossa preferência, como o
mandarim.
Se fizéssemos uma lista da
feérie intrínseca à aceleração dos dias vigentes, ela certamente preencheria
dezenas de páginas. Caso a gente queira adquirir qualquer coisa — como os
préstimos de fornecedores diversificados, incluindo-se os da esfera sexual — e
se encontre, nesta ocasião, num local fixo, não precisa usar o telefone.
Nem tampouco sair de casa e abandonar o fatídico ângulo de 90º, próprio de
quando estamos sentados a navegar, feito múmias semiparalíticas com extenuantes
caibras nos dedos.
Sente fome? Reivindique o
prato preferido da sua gula online.
Experimentou uma pulsional vontade de
transar? Então baixe com facilidade aplicativos disponíveis para o seu
smartphone ou visite redes sociais especificas, centradas no unidunitê — o
parceiro #dahora é você.
Pirou geral? Terapias de
garantida eficácia se apresentam ao seu cardápio de escolhas, acenando
préstimos mediante módicas quantias acordadas por você em meio a desabafos
no Skype ou demais programas de voz.
Antigamente ouvia-se
comentar das ficções do gênio de Aladim, residentes em nossas fantasias e
responsáveis pela mais absoluta certeza de realização de nossos pitorescos
desejos. Agora, entretanto, descartamos esta história e a condenamos ao lixo
das inconveniências.
Paciência, compreensão,
foco, concentração, solidariedade e delicadezas diversas. Virtudes fora de uso,
abandonadas por sua inadequação atual e recolhidas aos baús da ética, dos
mandamentos relacionais envoltos pelo mofo dos tempos.
Hoje a ordem é correr,
descartar, apegar-se aos ditames da provisoriedade, ambicionar o enxerto de
braços elásticos que nos permitam abranger ambições infinitas.
Criar raízes, pra quê? As
árvores já cuidam dessa tarefa para a mãe natureza.
Nossos maiores interesses
hoje residem em mantermos a constante mobilidade dos ciganos digitais.
Apaixonarmo-nos perdidamente pelos últimos gadgets disponíveis no voraz mercado
das tecnologias de ponta, que despontam, sem cessar, causando fortes comichões
nos setores de compras avulsas espremidos em nosso cérebro.
E o namoro, a corte, os
beijos demorados de tão molhados, os sarros sem hora de acabarem, aperitivos
acalentadores das relações a dois — aonde foram parar?
O companheirismo, a
lealdade, as parcerias cúmplices, aonde se esconderam? “Certamente, em algum
lugar do passado”, responderá alguém com indisfarçável irritação.
Outra pessoa acrescentará,
casualmente: “Dirija-se ao Brechó dos Corações Bregas — que fica no Vale dos
Sonhos Sem Noção, ao final da Rua Sem Piedade, logo à direita do Armazém das
Nostalgias”.
Boa dica, essa. Adicione o
endereço ao seu GPS e voe até lá.
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